Ficção -> Conto
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ilustração


Noite feliz


           A mulher desceu do carro ajeitando a saia. Bochechou e cuspiu a água da garrafa e seguiu enquanto pneus cantavam atrás dela. A cidade toda estava muito iluminada naquela época do ano, mas não ali. Ela, versada nas ruas, estava acostumada com aquele tipo de escuridão. Noite do dia vinte e quatro era ruim de movimento, mas sempre tinha algum cliente que não passava com a família. Alerta, deteve o isqueiro no meio do caminho quando o ruído discorde se fez claro.

            O rapaz não teve que esperar muito. Comércio em horário estendido, centro cheio. As senhoras olhavam as vitrines na travessa quando anunciou o assalto. Não imaginava que alguma fosse reagir, atraindo a atenção da PM. Acertou com o ferro o rosto da velha que o segurava e fugiu costurando a multidão. Tomou o caminho do Boa Nova, não muito distante, mas obscuro o suficiente. Debaixo de uma marquise contava o dinheiro da bolsa roubada quando o som faiscou nos seus ouvidos.

            O caminhão de lixo parou e o motorista perguntou se ali estava bom. O homem agradeceu e seguiu caminhando pela rua escura. De quando em quando olhava o saco com o lombo embrulhado, o panetone e os pacotes e sorria. Olhava o espumante na outra mão e sorria. Constatou o uniforme imundo e assim mesmo sorriu, agradecendo a caridade das pessoas cujos restos recolhera o ano todo. Ainda sorria no breu quando o barulho o encandeou.

            Parecia bicho ferido. Mais de perto um balir improvável. O lamento conduziu a mulher, de lâmina em punho, até a caçamba. Lá chegando viu a outra deitada em pedaços de papelão sobre o entulho, ensopada de sangue da cintura nua para baixo. As duas se entreolharam e a mulher desarmada aconchegou a cria, silenciando a noite no peito. De alguma forma, o cordão umbilical já estava partido, embora não parecesse.

            O rapaz chegou-se e por um momento esqueceu do roubo, da polícia e de tudo. Deixou um bolo de notas amassadas aos pés da puérpera. O outro homem se juntou a eles e chorou ante a natividade que brotava no despejo. Esperou a mulher acionar a emergência para abrir o saco.

          Juntos, homens e mulheres cearam aguardando o socorro. Quando finalmente acenderam cigarros já passava da meia-noite e das brasas a fumaça subiu muito alto.



08/12/2024 09:28




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