VOZES DO RIO E DA SECA
adaptação de textos do escritor
João Cabral de Melo Neto
I. A VOZ DO RIO
(Ouve-se, em off e ainda no escuro, a Voz do Rio.)
“Atenção peço, senhores, para a minha leitura.
Meu nome é Capibaribe, rio Capibaribe,
E minha voz lhes guiará às figuras.
Este é o relato da viagem que faço
De minha nascente à cidade do Recife (e mais além, para o mar).
Sempre pensara em ir, caminho do mar;
Se bem que ainda não me lembre
Dessas primeiras léguas de meu caminhar.
Desde tudo que lembro, lembro-me de que já nasci descendo.
Lembro-me bem de que baixava entre terras de sede
Que das margens me vigiavam.
(A partir daqui, cena vai sendo iluminada e revelando os Severinos.
Todos se utilizam de máscaras neutras e estão, em princípio, estáticos.)
Por trás do que lembro, ouvi dizer de uma terra desertada,
Vaziada – não vazia – mais que seca: calcinada.
De onde tudo fugia, onde só pedra é que ficava;
Pedras e poucos homens com raízes de pedra, ou de cabra.
Lá o céu perdia as nuvens, derradeiras de suas aves;
As árvores, a sombra – que nelas já não pousava.
Tudo o que não fugia: gaviões, urubus, plantas bravas,
A terra devastada ainda mais fundo devastava...”
II. SEVERINOS
(Os Severinos distribuem-se pela cena, através da qual circulará o outro Severino, na tentativa de afirmar seu próprio espaço. Este Severino, ao contrário dos demais, não usa máscara. Luz cambiando, em resistência. Outra luz, frontal, de baixo para cima e na diagonal, que possibilite sombras.)
Severino: O meu nome é Severino, não tenho outro de pia. Como há muitos Severinos, que é santo de romaria, deram então de me chamar Severino de Maria. Como há muitos Severinos com mães chamadas Maria, fiquei sendo o da Maria do finado Zacarias.
Bloco: Mas isso ainda diz pouco, há muitos na freguesia.
Severino: Por causa de um coronel que se chamou Zacarias, e que foi o mais antigo senhor desta sesmaria.
Bloco: Como então dizer quem fala ora a Vossas Senhorias?
Severino (agora, à boca de cena): Vejamos: é o Severino da Maria do Zacarias, lá da Serra da Costela, limites da Paraíba.
Bloco: Mas isso ainda diz pouco!
Severino: Se ao menos mais cinco havia, com nome de Severino, filhos de tantas outras Marias, mulheres de outros tantos, já finados, Zacarias... Vivendo na mesma serra magra e ossuda em que eu vivia.
Bloco: Somos muitos Severinos, iguais em tudo na vida.
(A próxima fala de Severino, em delay, é reverberada pelo grupo, como numa reza.)
Severino: Na mesma cabeça grande, que a custo é que se equilibra; no mesmo ventre crescido, sobre as mesmas pernas finas; e iguais também porque o sangue que usamos tem pouca tinta. E se somos Severinos, iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte severina: que é a morte que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia (de fraqueza e de doença – é que a morte severina ataca em qualquer idade, e até gente não nascida).
Bloco: Somos muitos Severinos, iguais em tudo e na sina. (dispersando-se e deixando a cena)
Severino: A de abrandar estas pedras, suando-se muito em cima, a de tentar despertar terra sempre mais extinta, a de querer arrancar algum roçado da cinza. (luz geral baixando, foco de luz localizada centra-se no Severino)
Mas para que me conheçam melhor Vossas Senhorias, e melhor possam seguir a história de minha vida, passo a ser o Severino – que em vossa presença emigra.
(Cai a luz. Ouve-se, em crescendo, Coro dos Irmãos das Almas. Breves sons do vento.)
III. IRMÃOS DAS ALMAS
(Vem surgindo o Coro dos Irmãos das Almas, iluminando a cena por meio de invólucros vermelhos que contêm velas. Dois homens carregam defunto numa rede. Iluminação inicial feita por velas. O Coro repete, insistentemente, a melopéia “Ó irmãos das almas, irmão das almas, não fui eu que matei não”.)
- A quem estais carregando, irmãos das almas / embrulhado nessa rede / dizei que eu saiba.
- A um defunto de nada, irmão das almas / que há muitas horas viaja à sua morada.
- E sabeis quem era ele, irmãos das almas / sabeis como ele se chama ou se chamava?
- Severino Lavrador, irmão das almas / Severino Lavrador, mas já não lavra.
- E de onde que o estais trazendo, irmãos das almas / onde foi que começou vossa jornada?
- Onde a caatinga é mais seca, irmão das almas / onde uma terra que não dá nem planta brava.
- E foi morrida essa morte, irmãos das almas / essa foi morte morrida ou foi matada?
- Até que não foi morrida, irmão das almas / esta foi morte matada, numa emboscada.
- E o que guardava a emboscada / e com que foi que o mataram, com faca ou bala?
- Este foi morto de bala / mais garantido é de bala, mais longe vara.
- E quem foi que o emboscou / quem contra ele soltou essa ave-bala?
- Ali é difícil dizer, irmão das almas / sempre há uma bala voando / desocupada.
- E o que havia ele feito irmãos das almas / e o que havia ele feito contra a tal pássara?
- Ter uns hectares de terra / de pedra e areia lavada que cultivava.
- Mas que roças que ele tinha / que podia ele plantar na pedra avara?
- Nos magros lábios de areia, dos intervalos das pedras, plantava palha.
- E era grande sua lavoura, lavoura de muitas covas, tão cobiçada?
- Tinha somente dez quadras, todas nos ombros da serra, nenhuma várzea.
- Mas então por que o mataram / mas então por que o mataram com espingarda?
- Queria mais espalhar-se / queria voar mais livre essa ave-bala.
- E agora o que passará, irmãos das almas / o que é que acontecerá contra a espingarda?
- Mais campo tem para soltar, irmão das almas / tem mais onde fazer voar as filhas-bala.
- E onde o levais a enterrar, irmãos das almas / com a semente do chumbo que tem guardada?
- Ao cemitério de Torres, que hoje se diz Toritama, de madrugada.
- E poderei ajudar, vou passar por Toritama, é minha estrada.
- Bem que poderá ajudar, irmão das almas / é irmão das almas quem ouve nossa chamada.
- E um de nós pode voltar / pode voltar daqui mesmo para sua casa.
- Vou eu, que a viagem é longa / é muito longa a viagem e a serra é alta.
- Mais sorte tem o defunto / pois já não fará na volta a caminhada.
- Toritama não cai longe, irmãos das almas / seremos no campo santo de madrugada.
Coro (em forte uníssono): “Partamos enquanto é noite, irmãos das almas,
que é o melhor lençol dos mortos (pequena pausa) noite fechada!”
(Retomam a ladainha, baixando intensidade das vozes, deixando cena. Durante a mesma, além da iluminação por velas, apenas um ou outro foco de luz muito tênue – que se extinguirá ao final. Sobra o vento. E vai-se.)
IV. O RETIRANTE TEM MEDO DE SE EXTRAVIAR...
(Luz sobre Severino, nalgum plano superior de cena.)
- Antes de sair de casa, aprendi a ladainha das vilas que vou passar na minha longa descida.
Sei que há muitas vilas grandes, cidades que elas são ditas; sei que há simples arruados,
sei que há vilas pequeninas: todas formando um rosário cujas contas fossem vilas, de que a estrada fosse a linha.
Devo rezar tal rosário até o mar onde termina, saltando de conta em conta, passando de vila em vila.
Vejo agora: não é fácil seguir essa ladainha; entre uma conta e outra conta, entre uma e outra ave-maria,
há certas paragens brancas, de planta e bicho vazias; vazias até de donos, e onde o pé se descaminha.
Pensei que seguindo o rio, eu jamais me perderia: ele é o caminho mais certo, de todos o melhor guia.
Mas como segui-lo agora que interrompeu a descida?
Vejo que o Capibaribe, como os rios lá de cima, é tão pobre que nem sempre pode cumprir sua sina;
e no verão também corta, com pernas que não caminham.
Tenho de saber agora qual a verdadeira via entre essas que, escancaradas, frente a mim se multiplicam.
Mas não vejo almas aqui, nem almas mortas nem vivas; ouço somente à distância o que parece cantoria.
Será novena de santo, será algum mês-de-Maria?
Quem sabe até se uma festa ou uma dança não seria?
(Luz geral abrindo-se em plano inferior. pouco antes, grupo das mulheres trabalhadeiras iniciou sua cantoria.)
V. MULHERES TRABALHADEIRAS E HOMENS PARODIADORES
(Grupo de mulheres, lenços à cabeça e rotas roupas sobrepostas, executam ações cotidianas: aram a terra
com longos pedaços de paus feitos enxadas, carregam latas d’água sobre a cabeça, trabalham no pilão,
lavam roupa... A cantilena por elas executada emoldura o árduo esforço realizado.
Mulher com bacia lava-se com barro.
Em plano superior oposto ao de Severino, grupo de homens parodiadores: em determinado momento
receberão luz direta para o dizer de suas frases: secas, fortes, embora sibiladas.)
Cântico das Mulheres: “Finado Severino, ao passares em Jordão,
e os demônios te atalharem, perguntando o que é que levas...
Dize que levas cera, capuz e cordão, mais a Virgem da Conceição.
Finado Severino, ao passares em Jordão,
e os demônios te atalharem, perguntando o que é que levas...
Dize que levas cera, capuz e cordão,
(Homens Parodiadores: “Dize que levas somente coisas de não!”)
...Mais a Virgem da Conceição.
(Homens Parodiadores: “Fome. Sede. Privação.”)
Finado Severino, ao passares em Jordão,
e os demônios te atalharem, perguntando o que é que levas...
Dize que levas cera, capuz e cordão,
(Homens Parodiadores: “Dize que coisas de não: ocas, leves!”)
...Mais a Virgem da Conceição.
(Homens Parodiadores: “Como o caixão que ainda deves.”)
Uma excelência, dizendo que a hora é hora
Ajunta os carregadores, que o corpo quer ir embora.
Duas excelências, dizendo que a hora é hora
(Homens Parodiadores: “Dizendo que é hora da plantação!”)
Ajunta os carregadores, que o corpo quer ir embora.
(Homens Parodiadores: “Que a terra vai colher à mão!”)
(Fim de luz sobre Parodiadores e Severino. Mulheres continuam a cantoria e vão deixando
a cena com seus pertences. Restou apenas a mulher que se lavava.)
VI. TERRA
(Voz do Rio sobrevém às seguintes ações: mulher untando-se com barro; vindo do fundo, homem carrega criança nos braços, para em seguida colocá-la no chão, em pequeno berço de palha forjado por duas mulheres; atrás dele, veio a mulher com cesto de terra – supostamente, a mãe. Após deixar criança, homem juntou-se às rezadeiras – deste grupo, alguém trouxe trouxa de roupas e cacarecos deixada próximo à mãe. Esta apanha punhados da terra e deixa cair sobre o cadáver da criança; suas feições são duras e pode-se entrever ódio, revolta.)
Voz do Rio: “Vou deixando uma terra reduzida a sua areia, terra onde as coisas vivem a natureza da pedra.
Meu caminho divide, de nome, as terras que desço. Entretanto a paisagem, com tantos nomes,
é quase a mesma: a mesma dor calada, o mesmo soluço seco; mesma morte de coisa que não
apodrece – mas seca.”
Mãe (fria): É paisagem em que nada ocorreu, em nenhum século.
Nem mesmo as águas ocorrem na língua desses rios secos.
No mentido alicerce de morta civilização, a luta que sempre ocorre não é tema de canção.
É a luta contra o deserto, luta em que sangue não corre,
em que o vencedor não mata, mas aos vencidos absorve.
É uma luta contra a terra e sua boca sem saliva, seus intestinos de pedra, sua vocação de caliça.
Que se dá de dia em dia / que se dá de homem em homem
Que se dá de seca em seca / que se dá de morte em morte.
(Ouve-se trovoada. Suspensão geral de sons vocais e movimentos. Silêncio.
Forte luz amarelo-avermelhada invade cena. Mulher que se lava quebra o silêncio com seu riso.)
Mãe (mais forte): Nada aconteceu, embora a pedra pareça extinta,
e os restos dos monumentos finjam histórias e ruína.
De que seriam ruína? De que já foram paredes?
Coro das Rezadeiras: “Do forno em que o deus da seca acendia a sua sede”.
Mãe: Do forno em que o deus da seca acendia a sua sede!
(Despeja último punhado de terra. Apanha trouxa e vai saindo.
Grupo de Rezadeiras aproxima-se e ladeia a criança morta. Antes do final da luz, segue-se a voz do rio.)
Voz do Rio: “Nesta terra ninguém jaz, pois também não jaz um rio noutro rio, nem o mar é cemitério de rios.
Nenhum dos mortos daqui vem vestido de caixão; portanto, eles não se enterram: são derramados
no chão. Vêm em redes de varandas, abertas ao sol e à chuva; trazem suas próprias moscas,
o chão lhes cai como luva. Mortos ao ar livre, que eram, hoje à terra livre estão.
São tão da terra que a terra nem sente sua intrusão.”
VII. CANSADO DA VIAGEM...
(Luz sobre Severino.)
- Desde que estou retirando, só a morte vejo ativa; só a morte deparei, e às vezes até festiva;
só a morte tem encontrado quem pensava encontrar vida; e o pouco que não foi morte, foi de vida severina
(aquela vida que é menos vivida que defendida, e é ainda mais severina para o homem que retira).
Penso agora: mas por que parar aqui eu não podia, e como o Capibaribe, interromper minha linha?
Ao menos até que as águas de uma próxima invernia me levem direto ao mar, ao refazer sua rotina?
Na verdade, por uns tempos, parar aqui eu bem podia; e retomar a viagem quando vencesse a fadiga.
Ou será que aqui cortando agora a minha descida, já não poderei seguir nunca mais em minha vida?
(será que a água destes poços é toda aqui consumida pelas roças, pelos bichos, pelo sol com suas línguas?
será que quando chegar o rio da nova invernia, um resto de água do antigo sobrará nos poços ainda?)
Mas isso depois verei: tempo há para que decida; primeiro é preciso achar um trabalho de que viva.
(Luz sobre composição humana da janela.)
Vejo uma mulher na janela, ali, que se não é rica, parece remediada ou dona de sua vida.
Vou saber se de trabalho poderá me dar notícia.
VIII. MULHER À JANELA
(Mulher executa performance da janela, Severino aproxima-se.)
- Muito bom dia, senhora, que nessa janela está; sabe dizer se é possível algum trabalho encontrar?
- Trabalho aqui nunca falta, a quem sabe trabalhar; o que fazia o compadre, na sua terra de lá?
- Pois fui sempre lavrador, lavrador de terra má; não há espécie de terra que eu não possa cultivar.
- Isso aqui de nada adianta, pouco existe o que lavrar; mas diga-me, retirante, que mais fazia por lá?
- Também lá na minha terra, de terra mesmo pouco há; mas até a calva da pedra sinto-me capaz de arar.
- Também de pouco adianta, nem pedra há aqui que amassar; diga-me ainda, compadre, que mais fazia por lá?
- Conheço todas as roças que nesta chã podem dar: o algodão, a mamona, a pita, o milho, o caroá.
- Esses roçados o banco já não quer financiar; mas diga-me, retirante, o que mais fazia lá?
- Melhor do que eu ninguém sabe combater, quiçá, tanta planta de rapina que tenho visto por cá.
- Essas plantas de rapina são tudo o que a terra dá; diga-me ainda, compadre que mais fazia por lá?
- Tirei mandioca de chãs que o vento vive a esfolar e de outras escalavradas pela seca faca solar.
- Isto aqui não é Vitória, nem é Glória do Goitá; e além da terra, me diga, que mais sabe trabalhar?
- Sei também tratar de gado, entre urtigas pastorear: gado de comer do chão ou de comer ramas no ar.
- Aqui não é Surubim nem Limoeiro, oxalá! Mas diga-me, retirante, que mais fazia por lá?
- Em qualquer das cinco tachas de um bangüê sei cozinhar; sei cuidar de uma moenda, de uma casa de purgar.
- Com a vinda das usinas há poucos engenhos já: nada mais o retirante aprendeu a fazer lá?
- Ali ninguém aprendeu outro ofício, ou aprenderá: mas o sol, de sol a sol, bem se aprende a suportar.
- Mas isso então será tudo em que sabe trabalhar? Vamos, diga, retirante, outras coisas saberá.
- Deseja mesmo saber o que eu fazia por lá? Comer quando havia o quê e, havendo ou não, trabalhar.
- Essa vida por aqui é coisa familiar; mas diga-me retirante, sabe benditos rezar?
Sabe cantar excelências, defuntos encomendar? Sabe tirar ladainhas, sabe mortos enterrar?
- Já velei muitos defuntos, na serra é coisa vulgar; mas nunca aprendi as rezas, sei somente acompanhar.
- Pois se o compadre soubesse rezar ou mesmo cantar, trabalhávamos a meias, que a freguesia bem dá...
- Agora se me permite, minha vez de perguntar: como senhora, comadre, pode manter o seu lar?
- Vou explicar rapidamente, logo compreenderá: como aqui a morte é tanta, vivo de a morte ajudar.
- E ainda se me permite que lhe volte a perguntar: é aqui uma profissão trabalho tão singular?
- É, sim, uma profissão, e a melhor de quantas há: sou de toda a região rezadora titular.
- E ainda se me permite mais outra vez indagar: é boa essa profissão em que a comadre ora está?
- De um raio de muitas léguas vem gente aqui me chamar; a verdade é que não pude queixar-me ainda de azar.
- E se pela última vez me permite perguntar: não existe outro trabalho para mim neste lugar?
- Como aqui a morte é tanta, só é possível trabalhar nessas profissões que fazem da morte ofício ou bazar.
Imagine que outra gente de profissão similar - farmacêuticos, coveiros, doutor de anel no anular,
remando contra a corrente da gente que baixa ao mar, retirantes às avessas, sobem do mar para cá.
Só os roçados da morte compensam aqui cultivar, e cultivá-los é fácil: simples questão de plantar;
não se precisa de limpa, de adubar nem de regar; as estiagens e as pragas fazem-nos mais prosperar;
e dão lucro imediato; nem é preciso esperar pela colheita: recebe-se na hora mesma de semear.
(Mulher volta à janela para, desta vez, fechá-la. Blackout.)
IX. MÍSTICOS
(Prossegue a Voz do Rio, sobreposta à longínqua cantoria composta por sussurros e gritos agônicos.)
Voz do Rio: “Vou na mesma paisagem reduzida a sua pedra. a vida veste ainda sua mais dura pele.
Bastante sangue nunca existe guardado em veias, para amassar a terra que seca até sua funda pedra.
Nunca bastantes rios matarão tamanha sede, ainda escancarada, ainda sem fundo e de areia.
(Luzes pontuam.)
Coronéis e padroeiros vão desfilando em cada vila: muito pobres e sem vida.
Salgadinho, com pobres águas curativas; São Vicente, muito morta e muito antiga.
Pedra Tapada, com poucos votos e pouca vida. Pirauíra, um só arruado: todo ele pobre e sem vida.
Que só há essa resposta à ladainha dos nomes dessas vilas.
(Tons avermelhados e cambiantes vão revelando ambiente: macabro, um quê de demoníaco.
Corpos mutilados e de expressões petrificadas em ritos de dor lancinante ocupam o espaço.
São corpos que trazem galhos secos como extensão deles mesmos. Há uma personagem central,
“a louca”, expressão lívida, atitudes e gestos congelados numa última ação: a de se entregar,
corpo e alma, ao deus-causa de uma espécie de sofrimento purificador; a de se deixar possuir por
esse deus, o corpo sacrificado pela dor como libertação do espírito. Esta personagem é também
a fonte de origem e difusão de fumaça que se espalha pela cena. O espaço cênico é também ocupado
por nichos, tais quais pequenos altares, queimando folhas, espalhando fumaça e odor pelo ambiente.)
Voz do Rio: “As vilas vão passando, com seus santos padroeiros.
Primeiro é Poço Fundo, onde Santo Antonio tem capela.
Depois é Santa Cruz, onde ao Senhor Bom Jesus se reza.
Toritama fez para Conceição a sua igreja.
A Vila do Capado chama-se pela sua nova capela.
Em Topada, a igreja com um cemitério se completa.”
(Silêncio e suspensão geral das ações.)
“Sempre um santo preside a decadência de cada uma delas.”
(Súbita explosão de fumaça, gritos curtos, ruídos e sons.
Surge a Santa, sobre andor, carregada em procissão que se faz ouvir por cantoria. Trazem repositórios para velas, estandartes, terços, etc. Ilumina-se a figura do Beato, personagem modelarmente mística:
longas e rotas vestes; numa das mãos, máscara com vara que se faz de cajado, e na outra, um chicote.)
Beato: Aproximai-vos do altar divino!
Coro (ritual): Com as mãos limpas e lavadas. No rosto, uma máscara de paz.
Cobrindo a angústia da dor, da inevitável memória da fome, da inevitável falta de amor.
Beato (transfigurado): É possível que o homem fosse um ser criado para ser abandonado? É possível que o criador
deixasse o homem de lado só por culpa do pecado? É possível que o sofrimento esteja nos
planos de deus? É possível que a angústia seja um mandado divino? É possível que a
violência seja um acordo entre o Senhor dos Exércitos e a humilde condição humana?
Se tudo isso é possível, se tudo existe assim, ergamos nossa voz: clamando!
(As palavras do Beato são acompanhadas pela repetição do Coro que, ao final, puxa oração.)
Coro: Quando batem as seis horas / de joelhos sobre o chão / o sertanejo reza / a sua oração
Ave Maria / mãe de deus Jesus / nos dê força e coragem / pra carregar a nossa cruz
Nesta hora bendita e santa / devemos suplicar / à virgem imaculada / aos enfermos vir curar
Ave Maria / mãe de deus Jesus / nos dê força e coragem / pra carregar a nossa cruz
(Coro persiste em sua ladainha, enquanto “a louca” inicia monólogo; há inconformismo em suas palavras,
algo que crescerá para transformar-se em desafio e revolta.)
A Louca: Como ter alegria, Senhor, neste tempo de privação?
Como ter alegria, consciente do sentimento do mundo?
Alegria porque a mão colheu, escolheu as sementes, semeou e tornou a colher?
Alegria porque uma criança nasceu?
Mas Senhor, tudo o que plantamos, tudo o que construímos e fazemos nascer, é pra morte vir e colher!
Nos acostumamos à morte e ao genocídio. Estamos resistentes e intoxicados a qualquer notícia.
Esperamos, como num jogo, ser personagens da tragédia.
Aí então nos desesperamos e tentamos providências. Aí então gritamos, mas ninguém nos ouve.
Porque o ar está poluído de berros lancinantes.
Aí então tentamos explicar o mal do mundo, mas ninguém nos ouve.
Porque ninguém mais tem ouvido pra essas coisas.
E a notícia do mundo é tão tragicamente forte,
que a humanidade devia chorar e se afogar num autodilúvio de lágrimas.
Mastigar a fome e engoli-la sem água!
Mas o homem está calmo e feliz, à espera de que invadam sua casa,
atirem sobre seu filho e violentem sua mulher.
(A personagem tenta agora convencer os integrantes do Coro, imóveis em sua ladainha lamurienta.
O Coro passa então a repetir nova estrofe, e ambos, mulher e Coro, cospem as palavras cada vez com mais força.)
Coro (novo refrão): Cada minuto tem seu deus / cada segundo e cada parte do segundo
Cada momento tem seu mito / e um homem que repete: acredito!
A Louca: Mas isto já aconteceu, só falta perceber! Essa humanidade contraditória,
essa procura de seres abandonados à própria sorte, por entre pedaços de corpos!
Certa facilidade de sobrevivência, egoísta e pessoal, castra no homem sua sensibilidade geral.
Quem sabe da felicidade é o recém-afogado no mar.
Só uma consciência em cacos entende um mundo despedaçado.
É preciso seres desiguais e concordantes, ao invés de iguais e discordantes.
Coro: Aceitai que eu não seja eu, aceitai que tu não sejas tu.
Aceitai, porque eu sou um pedaço de ti, embora não queiras te arrebentares.
A Louca: Aceitai esta oferenda, quase louca, quase nobre / destes palhaços da emoção, destes títeres da imitação
De nós, de cada vagabundo / que se presta a ser o espelho do mundo.
Todos: Porque eu sou a esperança da lágrima / e a inevitabilidade do sorriso
Sou o vínculo entre tu e tu mesmo / sou o vácuo povoado / sou a queda e o vôo / a noite densa e o dia raiado
(Estado de catarse coletiva: exacerbação e delírio. Os sons vão se extinguindo,
à medida que as personagens vão deixando a cena. A Santa caiu do pedestal, substituída no andor pela Louca,
o povo carregando aquela que representa a manifestação de entrega total aos sentidos.)
Santa (só em cena, recompondo-se): É uma espécie estranha... Tem algo da aparência humana, mas seu torpor de
vegetal é mais da história natural. Estranhamente, no rebento cresce o ventre
sem alimento; um ventre entretanto baldio, que envolve só o vazio, e que
guardará somente ausência, ainda durante a adolescência, quando ainda esse
esse enorme abdome terá a proporção de sua fome. Aí então, esse ventre
devoluto, no adulto, mudará de aspecto: de côncavo se fará convexo, e o que
parecia fruta se fará palha absoluta.
Apesar do pouco que vinga, não é uma espécie extinta; mas é uma espécie
indigente – a planta mais franzina, num ambiente de rapina.
Difícil na região o cultivo dessa estranha espécie local,
onde até mesmo as formigas têm ar muito mais racional...
(Desce a luz)
X. ZONA DA MATA
(Segue-se a Voz do Rio. O retirante chega à Zona da Mata.)
Voz do Rio: “Parece que ouço agora: vou deixando o Agreste. Rio Capibaribe, que mau caminho escolheste!
Vens de terras de sola, curtidas de tanta sede, vais para terra pior, que apodrece sobre o verde.
Se no Sertão tudo secou até seu osso de pedra, se no Agreste a terra é dura,
o homem tem pedra para defender-se. Mas na Zona da Mata, a febre, a fome, até os ossos
amolecem. Penso; o rumo do mar sempre é o melhor para quem desce.”
Severino: Bem me diziam que a terra se faz mais branda e macia, quanto mais do litoral a viagem se aproxima.
Agora afinal cheguei nesta terra que diziam. Como ela é uma terra doce para os pés e para a vista.
Os rios que correm aqui têm a água vitalícia. Cacimbas por todo lado; cavando o chão, água mina.
Vejo agora que é verdade o que pensei ser mentira. Quem sabe se nesta terra não plantarei minha sina?
Não tenho medo de terra (cavei pedra toda a vida), e para quem lutou a braço contra a piçarra da
Caatinga, será fácil amansar esta aqui, tão feminina.
Mas não avisto ninguém, só folhas de cana fina; somente ali à distância aquele bueiro de usina;
somente naquela várzea, um bangüê velho em ruína.
Por onde andará a gente que tantas canas cultiva?
Feriando: que nesta terra tão fácil, tão doce e rica, não é preciso trabalhar todas as horas do dia,
os dias todos do mês, os meses todos da vida.
Decerto a gente daqui jamais envelhece aos trinta, nem sabe da morte em vida, vida em morte, severina;
e aquele cemitério ali, branco na verde colina, decerto pouco funciona e poucas covas aninha.
XI. ENTERRO
(Luz abrindo-se aos primeiros acordes da música “Funeral de um Lavrador”.
Grupo de pessoas frente ao cadáver coberto de flores, repete últimos versos das estrofes musicais.
Severino aproximou-se. Pessoas destacam-se do grupo para suas homenagens finais.)
1. Viverás, e para sempre, na terra que aqui tomas para si. E terás enfim tua roça.
Aí ficarás para sempre, livre do sol e da chuva, criando tuas saúvas.
2. Agora trabalharás só para ti, não a meias, como antes em terra alheia.
Trabalharás uma terra da qual, além de senhor, serás homem de eito e trator.
3. Trabalhando nessa terra, tu sozinho tudo empreitas: serás semente, adubo, colheita.
Trabalharás numa terra que também te abriga e te veste, embora com o brim do Nordeste.
4. Será de terra tua derradeira camisa...
Todos: Te veste, como nunca em vida.
4. Será de terra e tua melhor camisa...
Todos: Te veste, e ninguém cobiça.
4. Terás de terra, completo, o teu fato...
Todos: E pela primeira vez, sapato.
5. Tua roupa melhor será de terra, e não de fazenda...
Todos: Não se rasga e nem se remenda.
5. Tua roupa melhor e te ficará bem cingida...
Todos: Como roupa feita à medida.
6. Esse chão te é bem conhecido:
Todos: Bebeu teu suor vendido.
6. Esse chão te é bem conhecido:
Todos: Bebeu o moço antigo.
6. Esse chão te é bem conhecido;
Todos: bebeu tua força de marido.
1 e 2. Desse chão és bem conhecido:
Todos: Através de parentes e amigos.
1 e 2. Desse chão és bem conhecido:
Todos: Vive com tua mulher, teus filhos.
1 e 2. Desse chão és bem conhecido:
Todos: Te espera de recém-nascido.
Mulheres: Não tens mais força contigo.
Homens: Deixa-te semear ao comprido.
Mulheres: Já não levas semente viva.
Homens: Teu corpo é a própria maniva.
Mulheres: Já não levas semente na mão.
Homens: És agora o próprio grão.
Mulheres: Dentro da rede não vinha nada.
Homens: Só tua espiga debulhada.
Mulheres: Dentro da rede vinha tudo.
Homens: Só tua espiga no sabugo.
Todos: Na mão direita um rosário, milho negro e ressecado.
Na mão direita somente o rosário, seca semente.
Na mão direita o rosário, semente inerte, e estéril.
Homens: Despido vieste no caixão:
Mulheres: Despido também se enterra o grão.
Homens: De tanto te despiu a privação:
Mulheres: Que escapou de teu peito a viração.
Homens: Tanta coisa despiste em vida:
Mulheres: Que fugiu de teu peito a brisa.
1. E agora, se abre o chão e te abriga
2. Lençol que não tiveste em vida
3. Se abre o chão e te fecha
4. Dando-te agora cama e coberta
5. Se abre o chão e te envolve
6. Como mulher com que se dorme.
(Preparam-se para retirada do cadáver.)
XII. PRESSÁGIOS
(Foco em Severino.)
Nunca esperei muita coisa, digo a Vossas Senhorias. O que me fez retirar não foi a grande cobiça;
o que apenas busquei foi defender minha vida de tal velhice que chega antes de se inteirar trinta;
se na serra vivi vinte, se alcancei lá tal medida, o que pensei, retirando, foi estendê-la um pouco ainda.
Mas não senti diferença entre o Agreste e a Caatinga, e entre a Caatinga e aqui, a Mata,
a diferença é a mais mínima. Está apenas em que a terra é por aqui mais macia; está apenas no pavio,
ou melhor, na lamparina: pois é igual o querosene que em toda parte ilumina,
e quer nesta terra gorda quer na serra, de caliça, a vida arde sempre com a mesma chama mortiça.
Agora é que compreendo por que em paragens tão ricas o rio não corta em poços como ele faz na Caatinga:
vivi a fugir dos remansos a que a paisagem o convida, com medo de se deter, grande que seja a fadiga.
Sim, o melhor é apressar o fim desta ladainha, o fim do rosário de nomes que a linha do rio enfia;
é chegar logo ao Recife, derradeira ave-maria do rosário, derradeira invocação da ladainha.
Recife, onde o rio some, e esta minha viagem se fina.
(Cai a luz.)
XIII. FESTANÇA
(Ainda no escuro, ouvem-se sons festivos, em contraponto à Voz do Rio. Fogos “de artifício de bombril”,
em movimentos circulares, representam as primeiras luzes. Idéia básica da cena: representação de algum
tipo de folguedo popular, como por exemplo, “uma festa do boi”. Severino, recuperando textos anteriores,
fará a vez do Cantador. Mulheres, em trajes de tiras e bastante coloridos, entoarão refrão. Há também a
presença de músicos, que a partir de determinado momento, executarão a marcação rítmica da cena.)
Voz do Rio: “Só após algum caminho é que os rios contam seu segredo.
Contam porque possuem aquela pele tão espessa, porque descem tão tristes,
arrastando lama e silêncio. A história é uma só que os rios sabem dizer:
a história dos engenhos com seus fogos a morrer.
Em tais histórias existe sempre uma usina com moenda de nome inglês.
A usina com sua boca; com o engenho, só a terra conhecida como massapé.
E o que não pode entrar nas moendas de nome inglês,
a usina vai moendo com outros muitos meios de moer.
a usina tem urtigas, a usina tem morcegos que ela pode soltar como amestrados exércitos
para ajudar o tempo que vai roendo os engenhos.”
(Entrada dos músicos, homens, executando marcação rítmica da cena.)
Voz do Rio: “As coisas não são muitas que vou encontrando nesse caminho. Tudo planta de cana,
nos dois lados do caminho. Tudo planta de cana, e assim até o infinito. Tudo planta de cana,
pra uma só boca de usina. As casas não são muitas que por aqui tenho encontrado.
Os povoados são raros que a cana não tenha expulsado.”
(Músicos posicionaram-se, para início da marcação sonora e coreográfica a seguir. Entrada das mulheres, Cantador e do Boi, respectivamente. Cantador puxa repentes, ancorado pelo refrão das mulheres.
Após primeira parte da cantoria, permanece apenas marcação dos músicos.
Voz do Rio volta a sobrepor-se, enquanto a dança vai perdendo o ritmo – e mesmo os músicos.)
Voz do Rio: “Vira canas comer as terras que iam encontrando;
com grandes canaviais, todas as várzeas ocupando.
O canavial é a boca com que primeiro a usina devora matas e capoeiras, pastos e cercados;
com que depois devora a terra, onde um homem plantou seu roçado;
depois os poucos metros onde ele plantou sua casa;
depois o pouco espaço de que precisa um homem sentado;
depois os sete palmos onde ele vai ser enterrado.”
(Repentinamente, músicos retomam o vigor, e o grupo de mulheres recupera também o fervor da dança.
Volta a Voz do Rio, ao passo em que dança e ritmo voltarão a perder a força, até estancarem de vez.)
Voz do Rio: “Mas na usina é que vi aquela boca maior, por detrás das bocas que ela plantou.
Boca de usina: boca que devora bocas que devorar mandou.
Na vila da usina é que fui descobrir a gente que as canas expulsavam das ribanceiras e vazantes;
e que essa mesma gente, na boca da usina,
são os dentes que mastigam a cana que a mastigou enquanto gente.
Gente que se estagna nas mucosas deste rio, morrendo de apodrecer vidas inteiras a fio.
Gente que, a cada ano, só o tempo da safra é que vive.
Gente que, na braça da vida, tem marcado curto o limite.
Vi homens de bagaço, que a morte úmida embebia.
E vi todas as mortes em que essa gente vivia.
Vi também a morte por febre, precedida de seu assovio,
consumir toda a carne com um fogo que por dentro é frio.”
(Cantador, sem sucesso, esforça-se para puxar nova animação. dançarinas e músicos retiram-se.)
Voz do Rio: “Para trás vai ficando a triste povoação daquela usina, onde vivem os dentes com que a fábrica
mastiga. Ali não há morte de planta que seca, ou de rio: é morte que apodrece, ali natural, pelo visto.”
(Cantador “enfia a viola no saco”, e sai.)
XIV. COVEIROS
(Cena em dois planos aparentemente distintos, mas que jogam entre si. Há o plano dos mortos, formado por algumas pessoas que podem já ter ficado da cena anterior, e o plano dos vivos, composto pelos três coveiros que chegaram há pouco. É noite. Coveiro A, um suposto visitante, ilumina a cena para os outros dois, B e C – que se utilizam de pedaços de pau para a execução de ações características: limpeza do terreno, escavação, simples apoio, etc. Mas a principal ação destes é representada pela reorganização dos cadáveres pelo espaço cênico.)
Coveiro B: O dia está difícil, não sei onde vamos parar!
Coveiro A: Pois eu me daria por contente se me mandassem para cá. Porque parece que a gente que se enterra, lá
no de Casa Amarela, está decidida a mudar-se toda pra debaixo da terra...
Coveiro C: É que o colega ainda não viu o movimento. Fique-se por aí um momento, e não tardarão a aparecer os
defuntos que vão chegar (ou partir, não sei...) É como a estação de trens: diversas vezes por dia chega o
comboio de alguém.
A: Mas se teu setor é comparado à estação dos trens, o que dizer de Casa Amarela, onde não pára o vaivém?
Será parada de ônibus, com filas de mais de cem!
B: Então por que não pedes, já que és de carreira e antigo, que te mandem aqui pra Santo Amaro, se achas mais
leve o serviço?
C: Não creio que te mandassem para as belas avenidas, onde estão os endereços e o bairro da gente fina:
bairro dos usineiros, dos políticos, dos banqueiros...
B: Difícil...
A: Só pedi pra que me mandassem para as urbanizações discretas, com seus quarteirões apertados,
com seus cômodos de pedra.
C: Ah... para esse vão os jornalistas, os escritores, os artistas...
B: E os de profissões liberais, que não se libertaram jamais!
(Risos. Estranhamento de um dos defuntos, de pé posicionado.)
Defunto 1: Por que todo este muro? Por que isolar estas tumbas do outro ossário mais geral que é a paisagem
defunta?
Defunto 2: Cemitérios gerais, onde não se cabe fazer cercas. Nem mesmo podem ser inspiração para os artistas,
estes cemitérios sem vida, frios, de estatística. Se muito, podem ser tema para as artes retóricas,
que as celebram porém do Sul, longe da tumba toda. Para a retórica de câmara...
Defunto 1: Câmara política...
Defunto 2: ...que se exercita humanizando estes mortos de cifra.
Defunto 1: Nestes cemitérios não há gavetas, em que se capitalizem os resíduos de um morto.
A todos os defuntos logo o Sertão desapropria, pois não quer defuntos privados o Sertão coletivista.
E assim, não reconhece o direito a túmulos estanques, mas socializa seus defuntos numa só tumba
grande.
Coveiro A: Só queria deixar o subúrbio dos indigentes, onde se enterra toda aquela gente de braços devolutos;
são os que jamais vestem luto, e se enterram sem salvo-conduto.
Coveiro C: Sei bem... É a gente dos enterros gratuitos e dos defuntos ininterruptos.
Coveiro B: Gente retirante, que vem do sertão de longe...
Coveiro C; E que então, ao chegar, não tem, mais o que esperar.
Coveiro B: Não podem mais continuar pois tem pela frente o mar...
Coveiro C: Não tem onde trabalhar e muito menos onde morar...
Coveiro A: É... e da maneira em que está, não vão ter onde se enterrar!
(Defuntos reposicionados.)
Defunto 3: Nestes cemitérios gerais não há a morte excesso. Ela não dá ao morto maior volume ou peso.
A morte aqui não é indigesta, é morte azia: é o que come por dentro o invólucro que nada envolvia.
Defunto 4: Nestes cemitérios gerais não há a morte isolada, mas a morte por ondas, para certas classes
convocadas. Vão todos com a morte padrão, em série fabricada.
Defunto 5: A morte aqui é ao ar livre, seca. Morte escancarada, sem mistério.
Faz defuntos funcionais, próprios a uma terra sem vermes.
Defunto 1: Nestes cemitérios gerais os mortos não variam nada. É como se, morrendo, nascessem de uma raça.
Todos esses mortos parece que são irmãos, é o mesmo porte;
se não da mesma mãe, irmãos da mesma morte.
Defunto 2: Eis um defunto nada humano – que nem lembra um homem, se o foi. E no qual nada mostra, se a
morte doeu, ou dói. Se lembra algo, lembra é as pedras, essas de ar não inteligente;
as pedras que não lembram nada de bicho ou gente.
Defunto 3; Em nenhum deles há as posturas desses que morrem sob protesto. É sempre a mesma pose:
sem nenhum grito, sem nenhum gesto.
Defunto 4: Cemitérios gerais que não exibem restos. Tão sem ossos que até parece que cães passaram perto.
Defunto 5: Cemitérios gerais que dos restos não cuidam, e cujos restos são de defuntos defuntos. Nem conhecem
a fase prima da podridão, em que os defuntos se projetam, quando nada, em exalação. Só restos
minerais, infecundos, calcários; são menos cemitérios que ossários.
Defunto 4: Cemitérios gerais que não toleram restos. Nem mesmo um pouco que se possa encomendar ao céu
ou ao inferno. Talvez porque os mortos que têm não possuam tal resíduo: a alma.
Talvez porque esta tenha consistência mais rala.
(Coveiros retomam foco. Severino, a certa distância, ouve falas finais.)
Coveiro A: Uma coisa notei que jamais entenderei: toda essa gente do Sertão, que desce para o litoral
sem razão, e que fica vivendo na lama, comendo os siris que apanha... Pois bem:
quando sua morte chega, temos que enterrá-los em terra seca.
Coveiro C (troçando): Seria mais rápido e também muito mais barato que os sacudissem de qualquer ponte,
dentro do rio e da morte.
Coveiro B: O rio daria a mortalha, e até um macio caixão d’água...
Coveiro A: E também o acompanhamento, que levaria com passo lento,
o defunto ao enterro final, a ser feito no mar de sal.
Coveiro B: E não precisava dinheiro, não precisava coveiro...
Coveiro C: E não precisava oração, não precisava inscrição... Mas o que se vê não é isso: é sempre nosso serviço,
crescendo mais a cada dia. Morre gente que nem vivia.
Coveiro A: E esse povo lá de riba, de Pernambuco, da Paraíba, que vem buscar no recife poder morrer de velhice,
só encontra aqui chegando, cemitério esperando...
Coveiro C: Não é viagem o que fazem, vindo por essas caatingas e vargens... Aí é que está o seu erro...
Coveiros A, B e C: Vêm é seguindo o próprio enterro!
(Cai a luz. Alguns corpos já haviam sido deslocados para dentro e fora de cena. Saem os Coveiros.)
XV. CAIS
(Idéia básica da cena: traçar um quadro da indigência da vida da gente que habita a beira do Cais,
“a cidade anfíbia por baixo da Recife contada em guias”. Os atores que permaneceram em cena apenas reposicionaram-se; outros entram posteriormente, ajudando a compor o painel. Todos executam pequenas
ações particulares, em tempos diversos embora predominantemente lânguidos, rasteiros, abjetos:
fogem da luz, arrastam-se, esmolam; observam e apanham alguma coisa no ar; movem-se como
se não enxergassem, enfim, o tom geral da cena aproxima-se da estética expressionista.
As pessoas sussurram a “Asa Branca”. Outros sons acompanham a Voz do Rio.)
Voz do Rio: “Ao entrar no Recife, não pensem que entro só. Entra comigo a gente que comigo baixou,
por essa velha estrada que vem do interior. Entram comigo rios a quem o mar chamou,
entra comigo a gente que com o mar sonhou, e também retirantes em quem só o suor não secou.
E entra essa gente triste, a mais triste que já baixou:
(Caem alguns corpos.)
A gente que a Usina, depois de mastigar, largou.
Casas de lama negra há plantadas naquela cidade anfíbia que existe por debaixo da Recife
contada em guias. Aqui, deságua a gente que de longe desceu em minha companhia;
aqui deságua a gente de existência imprecisa, no seu chão de lama entre água e terra indecisa.
(Entra Severino, que permanece a contemplar o rio.)
Conheço toda a gente que deságua nestes alagados. Não estão no nível do cais: vivem no nível
da lama e do pântano. Gente de olho perdido, olhando-me sempre passar; gente que sempre me
olha como se, de tanto me olhar, eu pudesse o milagre de, num dia ainda por chegar,
levar todos comigo, retirantes para o mar.”
Severino: Nunca esperei muita coisa, é preciso que eu repita. Sabia que no rosário de cidade e de vilas,
e mesmo aqui no Recife, ao acabar minha descida, não seria diferente a vida de cada dia:
que sempre pás e enxadas, foices de corte e capina, ferros de cova, estrovengas o meu braço esperariam.
Mas que se este não mudasse seu uso de toda vida, esperei, devo dizer, que ao menos aumentaria
na quartinha, a água pouca, dentro da cuia, a farinha, o algodão da camisa, ou meu aluguel com a vida.
Voz do Rio: “Conheço toda essa gente, do Agreste e da Caatinga; gente também da Mata, vomitada pelas usinas.
Tudo o que encontrei, na minha longa descida, tudo levava um nome com que poder ser conhecido:
a não ser essa gente que pelos mangues habita – eles são gente, apenas, sem nenhum nome que os
distinga – que os distinga na morte, que aqui é anônima e seguida.”
Severino: Mas chegando, aprendo que, nessa viagem que eu fazia, sem saber desde o Sertão,
meu próprio enterro eu seguia. Só que devo ter chegado adiantado de uns dias; o enterro espera na porta:
o morto ainda está com vida. A solução é apressar a morte a que se decida e pedir a este rio,
que vem também lá de cima, que me faça aquele enterro que o coveiro descrevia: caixão macio de lama,
mortalha macia e líquida, coroas de baronesa junto com flores de aninga, e aquele acompanhamento
de água que sempre desfila (que o rio, aqui no Recife, não seca, vai toda a vida).
Voz do Rio: “Aqui é cidade sem nome, sob a capital tão conhecida. Sua metade podre, que com lama podre se
edifica. Se é também capital, será uma capital mendiga. É cidade sem ruas e sem casa que se diga.
Desta capital podre, só as estatísticas dão notícia:
ao medir sua morte; pois não há o que medir em sua vida.”
(À exceção de Severino, todos os demais deixaram a cena
– após ter sido revelado José, mestre carpina, até então oculto no bloco formado pelas pessoas.)
XVI. O CARPINTEIRO
(Aproxima-se do retirante o morador de um dos mocambos locais.)
Severino: Seu José, mestre carpina, que habita este lamaçal: sabe me dizer se o rio a esta altura dá vau?
Sabe me dizer se é funda esta água grossa e carnal?
José: Severino, retirante, jamais o cruzei a nado; quando a maré está cheia vejo passar muitos barcos,
barcaças, alvarengas, muitas de grande calado.
Severino: Seu José, mestre carpina, para cobrir corpo de homem não é preciso muito água:
basta que chega o abdome, basta que tenha fundura igual à de sua fome.
José: Severino, retirante pois não sei o que lhe conte; sempre que cruzo este rio costumo tomar a ponte;
quanto ao vazio do estômago, se cruza quando se come.
Severino: E quando ponte não há? E quando os vazios da fome não se tem com que cruzar?
E quando esses rios sem água são grandes braços de mar?
José: O meu amigo é bem moço; sei que a miséria é mar largo, não é como qualquer poço:
mas sei que para cruzá-la vale bem qualquer esforço.
Severino: E quando é fundo o perau? Quando a força que morreu nem tem onde se enterrar...
Por que ao puxão das águas não é melhor se entregar?
José: O mar de nossa conversa precisa ser combatido, sempre, de qualquer maneira;
porque senão ele alaga e devasta a terra inteira.
Severino: E em que nos faz diferença que como frieira se alastre, ou como rio na cheia,
se acabamos naufragados num braço do mar miséria?
José: Muita diferença faz entre lutar com as mãos e abandoná-las para trás,
porque ao menos esse mar não pode adiantar-se mais.
Severino: E que diferença faz que esse oceano vazio cresça ou não seus cabedais,
se nenhuma ponte mesmo é de vencê-lo capaz? Seu José, mestre carpina, que lhe pergunte permita:
há muito no lamaçal apodrece a sua vida? E a vida que tem vivido foi sempre comprada à vista?
José: Sou de Nazaré da Mata, mas tanto lá como aqui, jamais me fiaram nada:
a vida de cada dia cada dia hei de comprá-la.
Severino: E que interesse, me diga, há nessa vida a retalho que é cada dia adquirida?
Espera poder um dia comprá-la em grandes partidas?
José: Severino, retirante, não sei bem o que lhe diga: não é que espere comprar em grosso de tais partidas,
mas o que compro a retalho é, de qualquer forma, vida.
Severino: Seu José, mestre carpina, que diferença faria se em vez de continuar tomasse a melhor saída:
a de saltar, numa noite, fora da ponte e da vida?
XVII. A ANUNCIAÇÃO
(Aproxima-se, afoita, a Mulher que anuncia.)
Mulher: Compadre José, compadre, que na relva estais deitado:
conversais e não sabeis que vosso filho é chegado?
Estais aí conversando em vossa prosa entretida:
não sabeis que vosso filho saltou para dentro da vida?
Saltou para dento da vida ao dar o primeiro grito; E estais aí conversando!
Pois sabeis que ele é nascido!
XVIII. O REBENTO E OS ANJOS
(Profusão de cores, luzes, sons animados, sinos... Atores preparam a caracterização do presépio.
Entra Maria, rebento ao colo, posiciona-se próxima à manjedoura, onde deposita o baby;
seguem-se entradas de José, animais, mulheres que espalham folhas e flores, etc.
Entram os anjos de barro, descalços, batendo colheres em panelas.
Nota: embora o tom geral da cena, festivo e sacro, faça alusão direta ao nascimento do dito cujo,
tratam-se das mesmas gentes miseráveis de sempre – o que deve ficar implícito.)
Anjos: Todo o céu e a terra lhe cantam louvor!
Anjo 1: Foi por ele que a maré esta noite não baixou!
Anjo 2: Foi por ele que a maré fez parar o seu motor: a lama ficou coberta e o mau cheiro não voou.
Anjos: Todo o céu e a terra lhe cantam louvor!
Anjo 1: E cada casa se torna num mocambo modelar!
Anjo 2: Cada casebre se torna no mocambo sedutor...
Anjo 1: Mocambos que tanto celebram os sociólogos do lugar...
Anjo 2: E este rio de água cega, de tanto comer terra e que jamais espelha o céu...
Anjos: Hoje enfeitou-se de estrelas!
(Saem os Anjos.)
XIX. O REBENTO E OS TRÊS REIS DA MENDINCÂNCIA
(Entram os três reis magos, trazendo presentes.)
Rei Mago 1: Minha pobreza tal é, que não trago presente grande:
trago para a mãe caranguejos pescados por esses mangues;
mamando leite de lama, conservará nosso sangue.
Rei Mago 2: Minha pobreza tal é, que melhor presente não tem:
dou este boneco de barro, de Severino de Tracunhaém.
Rei Mago 3: Minha pobreza tal é, que não tenho presente melhor:
trago papel de jornal, para lhe servir de cobertor;
cobrindo-se assim de letras, vai um dia ser doutor.
XX. AS CIGANAS
(Iluminam-se planos opostos, em nível superior. Forte trovoada, recrudescimento da luz.)
Primeira Cigana: Atenção peço, senhores, para esta breve leitura:
somos ciganas do Egito, lemos a sorte futura.
Vou dizer todas as coisas que desde já posso ver
na vida desse menino acabado de nascer:
aprenderá a engatinhar por aí, com aratus;
aprenderá a caminhar na lama, com goiamuns,
e a correr o ensinarão os anfíbios caranguejos,
pelo que será anfíbio como a gente daqui mesmo.
Cedo aprenderá a caçar: primeiro, com as galinhas,
que é catando pelo chão tudo o que cheira a comida;
depois, aprenderá com outras espécies de bichos:
com os porcos nos monturos, com os cachorros no lixo.
Vejo-o, uns anos mais tarde, na ilha do Maruim,
vestido negro de lama, voltar de pescar siris;
e vejo-o, ainda maior, pelo imenso lamarão
fazendo dos dedos iscas para pescar camarão.
Segunda Cigana: Atenção peço, senhores, também para minha leitura.
Também venho dos Egitos, vou completar a figura.
Outras coisas que estou vendo, é necessário que eu diga.
Minha amiga se esqueceu de dizer todas as linhas...
Enxergo daqui a planura que é a vida do homem de ofício.
De longe é como gente: de perto é que se vê o que há de diferente.
De longe é de osso e carne: de perto é que se vê que de outra qualidade.
De longe é branco ou negro: de perto é que se vê que é amarelo mesmo.
É amarelo de corpo e de estado de espírito:
de onde a calmaria, que às vezes até parece sabedoria.
Mas não é calma nada, é o nada, é calmaria.
Quando está dormindo, se vê que é incapaz de sonhos privativos.
Detrás de sua pálpebra haverá apenas treva, e de certo nenhum sonho ali se projeta.
Quando não está dormindo, é como se seu sono ainda o encharcasse.
Quando não está dormindo, não é que está acordado:
é apenas que caminha onde o sono é mais raso...
Mas para que não pensem que em sua vida tudo é triste,
vejo coisas que o trabalho talvez até lhe conquiste:
que é mudar-se destes mangues, daqui do Capibaribe,
para um mocambo melhor, nos mangues do Beberibe.
(Apagam-se luzes no plano das Ciganas.)
XXI. CÂNTICOS
(Retomada parcial do clima festivo da cena anterior. Pessoas ladeiam manjedoura e iniciam cânticos.)
Proclamação 1: De sua formosura já venho dizer: é um menino magro, de muito peso não é,
mas tem o peso de homem, de obra de ventre de mulher.
Proclamação 2: De sua formosura deixai-me que diga: é uma criança pálida, é uma criança franzina,
mas tem a marca de homem, marca de humana oficina.
Proclamação 3: Sua formosura deixai-me que cante: é um menino güenzo, como todos os desses mangues,
mas a máquina de homem já bate nele, incessante.
Homens: De sua formosura deixai-me que diga:
Mulheres: É belo como o coqueiro que vence a areia marinha.
Homens: De sua formosura deixai-me que diga:
Mulheres: Belo como o avelós contra o Agreste de cinza.
Homens: De sua formosura deixai-me que diga:
Mulheres: Belo como a palmatória na Caatinga sem saliva.
Homens: De sua formosura deixai-me que diga:
Mulheres: É tão belo como um sim numa sala negativa.
- Belo porque é uma porta abrindo-se em mais saídas.
- Belo como a última onda que o fim do mar sempre adia.
- Tão belo como as ondas em sua adição infinita.
- Belo porque tem do novo a surpresa e a alegria.
- Belo como a coisa nova na prateleira até então vazia.
- Como qualquer coisa nova inaugurando o seu dia.
- Ou como o caderno novo quando a gente o principia.
- E belo porque com o novo todo o velho contagia.
- Com oásis, o deserto; com ventos, a calmaria.
- Belo porque corrompe com sangue novo a anemia.
- Infecciona a miséria com vida nova e sadia.
(Descem as luzes. Pessoas retiram-se, levando coisas.)
XXII. EPÍLOGO
(A Voz do Rio já se faz ouvir, ao passo em que atores rearranjam o espaço para a cena final.)
Voz do Rio: “A um rio sempre espera um mais vasto e ancho mar.
Pra essa gente que desce é que nem sempre existe esse mar,
pois eles não encontram, na cidade que imaginavam mar,
senão outro deserto de pântanos perto do mar.
Há apenas esta gente. E minha simpatia calada.”
(Luz sobre Severino e José.)
José: Severino, retirante, deixe agora que lhe diga:
eu não sei bem a resposta da pergunta que fazia,
se não vale mais saltar fora da ponte e da vida;
nem conheço essa resposta, se quer mesmo que lhe diga.
É difícil defender, só com palavras, a vida;
ainda mais quando ela é esta que vê, severina;
mas se responder não pude à pergunta que fazia,
ela, a vida, a respondeu com sua presença viva.
E não há melhor resposta que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio, que também se chama vida;
ver a fábrica que ela mesma, teimosamente, se fabrica;
vê-la brotar, como há pouco, em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena a explosão, como a ocorrida;
mesmo quando é uma explosão como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão de uma vida severina.
(Desce a luz. Segue-se a última fala do Rio.)
Voz do Rio: “Ao partir em companhia dessa gente dos alagados,
que lhe posso dizer, que conselho, que recado?
Somente a relação de nosso comum retirar...
Não são apenas vítimas do mais puro descaso,
do descaso alheio e talvez também para consigo mesmas;
essa gente é também a sementeira:
onde se guardam as cinzas para o tempo de semear.”
(Blackout. Chove.)
c gomiero
ago / 03