Ficção -> Conto
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ilustração


Robô aspirador


 

            Já faz algumas semanas que ela chegou. Veio em uma grande caixa com ‘FRÁGIL’ escrito em capitais. Aguardadíssima que era, logo a parimos do papelão e do plástico bolha. Encaixamos escova, acoplamos reservatório e cortamos presilhas. Mal conectamo-na na base e já começou a falar com sua voz macia - e in english! Foi o bastante para que nos derretêssemos por ela. Chamamo-na de Higia, nossa deusa (ex machina) da limpeza.

            Ávida, dispensou cerimônias e foi mostrando a que veio: carregou apenas o suficiente, mapeou rápido o novo território e lançou-se aos afazeres. E quando digo afazeres não me refiro, claro, a algo apaixonante. Higia faxinava tudo, e o fazia de forma incansável. O que mais esperar de um autômato, não é?

           Ah, essas máquinas fascinantes e sua filosofia trabalhosa de trabalho! Enquanto todo mundo discute a respeito de redução de jornadas, 6x1 versus 4x3, etc, Higia traça, percorre, suga, esfrega, ganha momentum, depura, purga, e vai, e volta e não para. Para, mas só um pouco para recarregar, e recomeça, e traga, e saneia tudo. Foucault? Moral and Health Act? CLT? Qual! O trabalho espanta os vícios do ócio. Nada de pausas vãs, finais de semana, licenças e burnouts. Fria geringonça como tem de ser. Pelo menos eu achava isso até um dia desses.

         Um dia desses notei um pequeno ponto vermelho em sua escotilha. Chegando mais perto era um adesivo de coração. E foi aí que tudo degringolou. Coisa das minhas crianças, sabe? Os pequenos tem dessas coisas. E a gente, grande, sem tempo a perder que tempo é dinheiro, entra na deles às vezes. Depois disso fiquei mole. Segunda passada mesmo, quando apagava as últimas luzes do dia, pensei ter visto Higia em seu nicho se deixando incidir pelo luar que atravessava uma fresta da janela. Vi – ela não me viu – que entravam também por aquele mínimo vão uma réstia de céu e de quietude. E me pareceu que ela considerava aquilo com gravidade.

            Não sei. É certo que Deus ajuda quem cedo madruga e muito pode quem se esforça, mas não sei. Tenho pensado na minha robô. Acho que nos mais escaninhos circuitos do seu coração adesivo ela também aspira. Pensei em um dia escapar mais cedo do serviço, apanhá-la em casa e dar uma volta à toa para lhe mostrar o céu fora do expediente. O céu e, com sorte, alguns fogos e astros e os mistérios além deles.



31/10/2025 19:56




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