Ficção -> Conto
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ilustração


Jam


    Não duro até amanhã. É isso. Amanhã talvez eu não acorde dessa suposta última noite. Talvez tudo acabe com um novo enigma, ou recomece em outro formato, o que dá no mesmo em termos de impermanência. Não sei se é o jazz ou o vinho, ou se é a chuva que ameaçou e não veio, se bem que está mais para o vinho mesmo, e o jazz na playlist. A questão é que posso estar preenchendo linhas que não vou revisar, e já não é grande coisa quando reviso. Claro que tenho a opção de deletar tudo, o que ainda me deixa numa posição de controle, mas também pode soar como um trocadilho infame.

    Não sei se darão logo pela minha falta de existência, assunto tão não-evento hoje em dia. Haverá decerto alguma comoção exagerada, textos solenes com um laço preto no perfil, mensagens com triplas exclamações reticentes, algumas frases soltas e terá sido tudo. Um dia, outro e outros e então deixarei a pauta. Alguém eventualmente vai romancear alguma coisa que fiz, enfeitarão o que eu disse, farão de mim um aventureiro infalível por que é assim que nós somos. Pensando bem só temos mesmo essas projeções, já que tudo é fluido demais para deixarmos fluir naturalmente. A gente precisa comer o dicionário e borrar a tinta para continuar tocando o barco.

    Quero dizer, eu podia falar agora mesmo sobre o que me instiga ou emputece, sobre o que dá choque da cutícula até o cabelo com o terra na ponta da língua, mas, sabe, é mais fácil ligar o som e aceitar que tem coisas que não se pode transcrever ou não se tem habilidade para isso, só sentir. Sempre achei bem curioso quando se coloca em shuffle e uma música depois da outra elas vão conversando exatamente com aquilo que se sente, o que não se escreve, o subliminar. E já vá perdoando a falta de jeito, é que o relógio marcando assim os compassos dá uma bagunçada no foco.

    Se eu realmente acertar sem querer a respeito do tempo que ainda tenho disponível, tempo útil, se eu acertar em cheio e começar esse texto com essa premissa tiver sido um sinal, bem, eis aqui o último... troço que terei escrito. Eu sei, eu sei, e no fundo eu sempre soube, só desconversava. Talvez alguém diga algum dia que pareceu sincero. Não que sinceridade necessariamente favoreça em estilo, não, nem em estética, e a internet está aí para provar. Além do mais é difícil falar abertamente de uma forma assim, menos descartável, já que absolutamente tudo se acaba. Alguém poderia argumentar que letra cursiva ajudaria a parecer mais genuíno. Sim, com certeza. Mas ser íntegro eternamente é inviável e impossível.

    Se essas forem então minhas últimas palavras sou obrigado a me perguntar o que está por trás do Davis, o Evans e o Coltrane tocando juntos dessa forma para mim hoje. Gostaria de ter ouvido mais esses senhores, penso que poderiam ter me servido de inspiração. Quem sabe eu pudesse ter ouvido mais enquanto lia mais. Falo de qualquer leitura, todas elas. Mas como não se pode prever tudo resta se conformar com a compreensão rasa da realidade, se conformar com o acaso e abraçar o caos. Por que esse embaralhado, esse sono que a gente fica antes da hora sugere que morrer dormindo pode ser bem perigoso, e que a morte está nessas coisas que ficam pendentes, tipo o vinho que sobrou no copo. Nisso e nas canções as quais não se deu atenção, e na prateleira empoeirada. E na ideia perdida. Morrer de certa forma parece ter um pouco de ir deitar cedo sem ao menos um rascunho.

    Já bocejei nove vezes e nada de ficar mais fácil escrever no escuro, de improviso. Pelo contrário.



12/11/2024 23:04




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