Ficção -> Crônica
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ilustração


Wow e flutter


 

 Precisei de um vírus e uma porção de planos frustrados para me debruçar sobre o velho tape deck. Instado pelo tédio me meti a arqueólogo e, depois de desalojar algumas aranhas, meu artefato surgiu do meio do pó. Dei acabamento com uma flanela e logo parecia novo – até melhor do que eu me lembrava. Conectei um T e liguei na tomada.

 Interessante como algumas coisas antigas não ficam obsoletas. Apertei o Power e o painel acendeu obediente – menos o VU meter esquerdo, mortinho da silva. Depois escolhi uma fita qualquer da caixa de relíquias para testar. Fui no Play, Tape select, Pause, Stop, Rew e FF e rolei o dial, tudo deslizando quase como manteiga. Counter lento, mas ok. Foi quando eu verificava o Rec level e os alto-falantes berravam sobre correr e morrer na BR3, que li na borda inferior do aparelho ‘wow/flutter<0,1%’.

 Nunca tinha reparado naquilo. Esses micro systems são cheios de inscrições de rodapé, mas aquele 0,1% inferia coisa importante. Então dei um Google e descobri que qualquer movimento irregular do cassete, por rolamentos gastos ou engrenagens frouxas, por exemplo, faz o timbre oscilar. Se variações lentas temos o wow; do contrário, o flutter. Li que hoje, na era do som digital, computadores equalizam tudo sozinhos. E quanto mais curiosidades vintage eu lia, mais aquilo dissonava comigo. 

Vi então que o flutter é tido como mais desagradável ao ouvinte. Não quero soar apressado forçando extrapolações aqui, mas, sabe como é, o tempo urge e, a meu ver, temos ficado cada vez menos sensíveis ao acelerar dos nossos próprios compassos. Quero dizer, todo mundo anda com o pitch tão alto que ninguém mais acha estranho não parar para escutar quase nada - nem aos outros, nem a si mesmos. 

 Nada contra o sincopado do rock industrial, juro, mas por que não um pouco bossa para oxigenar? Ou um soul para dar alma ao drum n bass nosso de cada dia. Ou slow living num volume dê para conversar em troca de speed up songs e mensagens de áudio aceleradas. Um niksen bem tocado, que tal? Ruído rosa, o que me diz? Serve qualquer quebra de ritmo que funcione como âncora auditiva contra floods asfixiantes.

 Mas vamos com calma, não é minha intenção causar nenhum tipo de desassossego. Isso aqui foi só um desabafo de alguém a quem uma gripe lentificou os modos. E perdoe a escrita arrastada. É que o aparelho mastigou o Tony Tornado e não consigo fazer mais nada direito ao mesmo tempo que enrolo a fita.



28/08/2025 23:31




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