Ele vinha da escola triste. Por mais que se esforçasse não conseguia fazer amigos por lá. Mais tarde, sob as paredes grossas de sua casa se encontrava em conforto absoluto, maior do que encontrava em gente. Era como se o lugar lhe tivesse afeto. No breu da cama de baixo da beliche, sob a tenda de seu lençol que bloqueava a luz da janela, esculpiu as montanhas de cobertor onde morou, reinou e imaginou amigos por milênios. Estava em casa e ali as preocupações relativas aos esforços exigidos pelo “mundo real” não lhe tocavam.
Ela, mais uma vez, escapou. Estava no mesmo banco de sempre, entre a igreja e o salão de festas, na lateral da praça da Matriz e aguardava ansiosa a vigia noturna. Era uma senhora de certa idade, solteira e independente, e cheia de histórias. Em casa, seus pais, por volta desse horário, estariam discutindo sobre bebida, contas e outros tantos temas insuportáveis. Esqueciam que ela existia e, por isso, ela conseguia existir um pouco, viajando nas histórias sobre as quais a vigia noturna da praça lhe falava. Dia sim, dia não, nas primeiras horas de uma escala doze por trinta e seis, a vida era cheia de possibilidades.
Depois de nove horas na empresa, enquanto o ônibus movia seu corpo por outras duas mais, em um dia sem surpresas, estaria em casa… Daria um beijo em seu companheiro, perguntaria o que ele desejaria comer para deixar já descongelando e adiantar o preparo. Veriam algo na TV… O que? Um filme? Um ou dois episódios de alguma série? Fariam uma refeição cheia de carinho, e cada um em seu quarto, mais tarde, ao descansarem, teriam o coração aquecido por poder ter alguém com quem compartilhar, ainda que em um dia comum, um lugar no outro onde morar.
Chegaram mais dois amigos. É noite de sexta-feira! É noite de futebol. Essa semana não veio muita gente, é verdade, mas quem importava, de fato, estava ali. Depois do esporte, o bar, a conversa e o riso até quase amanhecer. Ainda que o peso das relações externas lhes curvassem os ombros e lhes pesassem nas pálpebras, aqueles três amigos só encontravam acolhida real estando juntos. Lá a alegria ou choro eram reais, ainda que socialmente justificados, eventualmente, pela embriaguez.
Nunca aceitaram que ela tivesse, após emancipada, decidido ir morar com seu avô. Esperavam tanto dela, cobravam-lhe formar família. Ser independente. Dar-lhes o orgulho que seria o esperado fruto do tanto que investiram em sua educação. Mas não. Ela amava seu avô. Disseram que era comodismo, disseram que era interesse. Ela jamais se incomodou. Seu avô estava feliz por não estar sozinho. Sentia-se privilegiado em receber o amor manifestado pela decisão da neta em permanecer presente, quando tudo o que era lógico lhe insinuava que se afastasse. Ali ela sentia-se respeitada. Com ele, compartilhava momentos bons, e no espaço que ele lhe ofereceu, encontrava paz, que era tudo o que mais almejava.
Lares são fugazes. Podem durar muitos anos, alguns meses ou horas. Lares são relativos, são posição no universo em que nos encontramos em afeto; seja conosco mesmos, com amigos, com amores, com nossa família ou com lugares. Lares são livres de medos, de expectativas, de julgamentos, precisam nos permitir momentos em que possamos existir com leveza. Lar? lares e similares.