Ficção -> Conto
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Birdwatching

(João-de-barro no pé de araçá)

Foram duas semanas indo e voltando do varjão. Duas semanas recolhendo barro, palha e esterco no bico, quase sem descanso na ventania agostinha. No começo o casal se revezava, mas logo a fêmea assumiu a função de oleira mestre, amassando e moldando o material que geraria o forno. Ao macho coube a função de transporte da carga remanente, disputando-a com outras aves construtoras.

O tempo seco acabou influenciando na escolha do terreno para a obra. Pela proximidade da várzea, decidiram construir o ninho nos ramos de um araçazeiro. A mirrada árvore, escassa de folhas e frutos, não era capaz de camuflar a edificação. Parecia um milagre da engenharia aviária que galhos tão finos pudessem sustentar mesmo uma singela casinha como aquela.

Apesar das dificuldades, depois de duas semanas lá estavam João e Maria-de-barro, asa a asa no átrio num dueto em chilro. Ela, dorso marrom-avermelhado e peito claro e amplo num gorjeio triunfante. Ele, de quilha acanhada e rêmiges encardidas, fazia voz passiva. A cantoria celebrando a conclusão do ninho também anunciava que a vida no cerrado tornava a se renovar.

O primeiro ovo mal esperou as paredes e a laje. Faltava o acabamento. Partiu João-de-barro em seu périplo à soja e ao pasto em busca de pelos e penas para forrar a câmara principal. Executava sua tarefa ante os piados cada vez mais graves da Maria, que agora se dedicava a chocar e a refutar qualquer insumo que não parecesse adequado ao futuro berço.

Assim seguiu o pássaro até que o quarto agradasse a companheira, por sorte, a tempo dos outros ovos. Foi quando Maria-de-barro desistiu de vez de sair da alcova, já que era preciso proteger o ninho em tempo integral. Era baixa e rala sua árvore e os inimigos tinham fome. Ela tinha fome. João, há pouco inelutável construtor, precisava agora prover a crescente família.

Ocorre que a caça andava minguada naqueles dias agrestes. Certa manhã só foi possível arrumar uma aranha miúda para o desjejum da parceira. Ela se agitou toda, arrepiando o penacho e piando gasguita. João ficou encurralado num galho fino e, quando a sarabanda terminou, voou ao largo em busca de mais comida.

A ave inicialmente voejou como pôde contra as lufadas quentes que sopravam desde cedo. Depois adejou da aroeira para a paineira para a mamica-de-porca e de novo para a aroeira. Tudo no seu plano de voo era uma mar amarelo onde os sobreviventes cavoucavam a terra atrás de vermes.

João já planava sem forças quando, aproveitando um zéfiro repentino, deixou-se levar. Foi dar nos limites de um vasto pomar, pousando num cambaruzeiro atarracado que prosperava decerto por descuido de alguém que deveria olhar pelas frutíferas. Ali mangas verdes esperavam na mangueira sua vez de se juntar a outras tantas atapetando o chão. Umas poucas mexericas se seguravam como podiam na ramagem. Goiabas chochas gestadas na falta d´água bichavam assim mesmo. Depois dos pés de frutas havia uma casa, essa de gente, florindo nos canteiros de beijo. E onde tinha gente tinha fartura. E sobra.

João, do seu mirante, reparou primeiro na grama viçosa, muito mais verde do que andava acostumado. E nesse gramado notou um bando de fogo-apagou batendo perna despreocupadamente. Observou um sabiá-do-campo tomando banho na cascata que saía de uma torneira mal fechada. Viu ainda um casal de tuí-tuí a se bicar no ar e dar rasantes na esmeralda. E então, cedendo a um desequilíbrio repentino, desceu até o desconhecido.

No chão, permaneceu imóvel por alguns instantes. Quase foi atropelado por um chupim, criatura sobre todas traiçoeira. Arisco, voou de volta ao cambaruzeiro, reavaliando a situação. Foi talvez um cricrilar mais e mais alto que o encorajou a descer outra vez. Acabou capturando um robusto grilo e a barriga cheia lhe devolveu a confiança.

Não demorou muito para João se aventurar pelo pátio todo, correndo, parando e correndo como se não tivesse asas. Percorreu todo o terreno como um local. Fuçou em busca de larvas aqui e acolá. Empanturrou-se com a quirela das galinhas e com um enxame de aleluias. Refrescou-se na garoa do aspersor de jardim. Ciscou. Passaritou. Passarinhou.

Tão a seu gosto estava a ave que não percebeu a sombra da goiabeira encontrando a moita de bananeira. Nem a sombra da bananeira se fundindo com a ciriguela. E a sombra da ciriguela se esticando até a casa e ambas sendo engolidas por uma escuridão muito maior, que o vento com cheiro de terra molhada trazia.

Tão absorto estava que foi o último a avoar quando a chuva despencou. Arranjou a varanda da casa como abrigo. Trepou num caibro rachado, onde uma fina e gelada neblina o alcançava.

João fitou o horizonte, tentando em vão atravessar a cortina d’água com os pequenos olhos irrequietos. O máximo que enxergava era a folhagem desesperada com o assovio da tempestade. Segurou-se como pôde enquanto andava de um lado para o outro no poleiro improvisado.

A tormenta demorou a acalmar, considerando o tempo dos pássaros. E, depois do aguaceiro, seguiu-se uma chuva frontal interminável. Tudo já era escuridade quando João começou a piscar lentamente. Logo dormiu.

Acordou sobressaltado com um carro barulhento estacionando na garagem. Apressou-se em conferir o céu e constatou que tinha parado de chover. Asinha, alçou voo.

Guiado por bússola e altímetro internos, visto que não era de voaduras noturnas, demorou a chegar ao pé de araçá. O que encontrou foi um arbusto retorcido onde antes havia uma casa de barro. No chão, torrões de terra, penas e cascas.

Naquela noite não se ouviu corujar de mocho-diabo nem gemido de urutau. Só um tardeiro lamento de João-de-barro reverberou no breu, sinalizando o fim da estiagem no mato grosso.

 



02/04/2025 23:06




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