Era para ter sido tudo discreto, até para preservar a espontaneidade. Algumas rápidas tomadas do cotidiano do fundamental e logo de volta à rotina. Mas, em se tratando de assuntos sigilosos, quanto mais desejável a reserva, mais certo a inconfidência. Tão logo o Ministro da Defesa em pessoa fez contato com o Governador, que comunicou o Prefeito e este seus assessores e o Diretor, pronto, toda a comunidade local entrou em estado de sítio. Não se falava em outra coisa, não se trabalhava, ninguém saía de casa despenteado e, principalmente, ninguém estudava mais na Cabeceira do Apa.
A equipe de filmagem atrasou em uma semana. Primeiro o avião, que não pousou em Campo Grande por questões meteorológicas, obrigando os gringos a vir de ônibus improvisado desde Guarulhos. Depois houve a questão do hotel, disseram que não contavam com a indisponibilidade de vagas (a bem da verdade, hotel nenhum havia ali; chegou-se a ventilar o ginásio como abrigo, mas logo descartaram). Sem opções próximas, acabou o Diretor mesmo arrecadando colchões e ventiladores na vila e hospedando a todos na sua casa. Aquela turma não estava acostumada com o calor desnaturante que fazia por ali.
A seguir vieram os vários dias de chuva que Deus mandou. Isso e aquilo, a luz não ajudava, a umidade atrapalhava os takes externos, raios podiam danificar o equipamento, etc. Até que resolveram, por falta de coisa melhor e de prazo, gravar tudo naquela quinta-feira nublada. O Ministro da Defesa avisou o Governador e este deu ordem ao Prefeito que daquele dia não podia passar. O Diretor ligou para a professora Mileide, “É hoje, dê sua melhor aula”.
Mileide, Tia Mi para as crianças, andava uma pilha de nervos. Desde que recebera a notícia que o seu segundo ano tinha sido escolhido, não comia direito e não dormia, reforçando as olheiras professorais. Da avó que ensinava por gosto na colônia passando à mãe com magistério completo e ela mesma traquejada na docência, não se podia dizer que falta de vocação ou experiência eram gatilhos da sua ansiedade. Pelo contrário, era admirada na vila pela dedicação aos seus educandos. “Os algoritmos, Mileide, os algoritmos”, ouviu o Diretor repetir incansavelmente, como quem enfim dominou um trava-línguas, “eles nunca erram”.
Mas Mileide acreditava que cientistas e algoritmos, desta vez, estavam redondamente enganados. Ou, pelo menos, a curadoria do tal New Golden Records estava. O projeto lhe parecia essencialmente estúpido: substituir os discos de ouro da década de setenta por uma versão que, palavras do prospecto oficial, representasse melhor um Homo sapiens sapiens plural e conectado. Como a sonda Voyager havia perdido inapelavelmente contato com a Terra, a ideia basicamente era relançar ao cosmos novos artefatos. Os LPs atualizados rodariam vídeos em alta definição no lugar de fotos analógicas, som lossless ao invés de fonogramas rudimentares, além de séries de emojis para ilustrar o ponto no qual nossa espécie se encontrava na linha evolutiva. E então, era só esperar alguma forma de vida alienígena interagir e expressar-se por meio de ícones de polegares.
A Professora há muito tinha visto na TV sobre esta nova empreitada da Agência Espacial Americana. Inicialmente ficou animada com a possibilidade dos pesquisadores herdeiros de Carl Sagan, responsável pelos discos originais, darem o ar da graça na Cabeceira. Isso ao menos poderia servir para despertar o interesse científico nas crianças. Mas nesta nova versão o repertório ficou a cargo, para surpresa de ninguém, da inteligência artificial. E, à exceção da docente, todos pareciam concordar que uma gravação na escolinha local ajudaria a afigurar uma amostra, digamos, universal da humanidade.
“Pela raça humana, Mileide, pela raça humana”, disse o Diretor em um último incentivo à Professora. Antes de sair ele cumprimentou teatralmente o cineasta, o cameraman e o grip, que retribuíram sem entusiasmo. O restante da equipe de cinegrafia acabou ficando do lado de fora da saleta. Alguns metros além, atrás da fita amarela de contenção, dezenas de locais se aboletava. O Diretor ainda fez questão de dar tapinhas nas costas de cada aluno que ia vencendo a multidão para assumir, debaixo de aplausos e assovios, seu lugar na sala de aula e na História.
Mileide suava em bicas. Todos, para ser sincero, transpiravam muito naquela manhã abafada. O ventilador de teto, se não garantia conforto térmico, ao menos confortava a professora que contemplava suas pás girando lentamente interessantes. Alternava o foco entre elas e um campo pintado na parede, com burrinhos puxando uma carroça cheia de morangas, um menino aguardando a fisgada do peixe na lagoa e um céu descascado acima da macieira, tudo derretendo de calor. Gelou um pouco o espírito quando viu os alunos se achegando nas suas carteiras.
O primeiro a aparecer foi o Jeová, cabelo engomado para trás e camisa um número maior, vidrado nos tacos rejuntados. “Bom dia, Jeová. Que bom que você veio hoje. O que aconteceu semana passada? Foi a chuva?”, quis saber a Professora, relaxando num meio sorriso para o pupilo. “Foi sim, Professora. Choveu e fui ajudar o pai na planta. Ele achou que não ia mais dar tempo de plantar. Falou que a roça esse ano não vai dar nada, mas minha mãe disse que é Deus que sabe”. Mileide ia dizer alguma coisa quando a luz da câmera a cegou por um instante. Quando conseguiu escapar do holofote viu os outros meninos já na sala. Um deles trombou na carteira.
“Ô, Arielton, machucou?”, apressou-se Mileide enquanto ajudava com os cadernos no chão. O cineasta fez sinal e o cameraman os seguiu com a câmera. O menino respondeu que tudo bem, só esbarrou. “Arielton, a posição das carteiras mudou hoje por causa das filmagens. Você tá sem óculos ainda?”, quis saber Mileide. “O pai vai na cidade semana que vem mandar fazer outro, Tia”. A Professora fez que sim, “Vou mandar outra cartinha pros seus pais. Claudinei, quer sentar mais aqui na frente?” O garoto, mais velho da turma e bastante mais crescido, só fez que não e fechou-se trombudo.
As meninas entraram mal disfarçando a empolgação com a aula-evento. Sara veio puxando o irmãozinho ainda menor que ela pela mão. “Bom dia, Sara. Já separei uma cadeira pro seu irmão ali do seu lado. Tua mãe já tinha me explicado; espero que ela e o bebê melhorem logo”. Os irmãos agradeceram. Já as gêmeas, pelo visto, haviam maquiado uma à outra sem reservas - era dia de festa. Elas acenavam e sorriam para a filmadora. Uma delas, Alice, disse para a lente que queria ser professora quando crescesse. “E eu quero ser astronauta”, sapecou Aline.
Mileide falou qualquer coisa para o pessoal da filmagem e eles deram alguns passos atrás, amuados em inglês. Organizou então as crianças nos seus lugares e olhou no relógio de pulso. “É só nós mesmo, Tia; com o barro o ônibus não passa no travessão da Figueira e parece que a água tava encostando na ponte velha. O Patrique e o Luiz só na segunda, se ficar sem chover”, Jeová adivinhou as preocupações da Professora. “E a Eneida? Ela mora perto. E o João? Alguém sabe por que não vieram?”. Não sabiam. Tratando os bichos? Ajudando em casa ou na roça? Tinham adoecido? As crianças não sabiam.
“Vamos pegar o livro de português”, disse resoluta a Professora. Não havia sinal da dúvida que a atormentara nos últimos dias sobre o material para a aula. O Diretor lhe dera autonomia, mas a responsabilidade era toda dela. “Ora, eles é que vão pro diabo”, libertou-se quando finalmente decidiu. Leitura e interpretação, riscou no quadro negro. “Hoje página duzentos e quinze. Claudinei, comece lendo esse texto, por favor”. O cinegrafista pediu para o grip subir o facho de luz e o cameraman calibrou a objetiva. Iluminado, Claudinei calou. “Ele não sabe, deixa eu, professora”, pediu uma das meninas. “Eu sei que ele consegue”, disse a professora levantando uma nuvem de giz quando bateu o apagador na lousa e se dirigiu ao fundo, agachando-se no chão ao lado do garoto. “Você consegue; lê baixinho só pra mim”.
Claudinei, de cabeça baixa, começou a ler quase inaudivelmente ‘O Menino e o Foguete’. Ninguém exceto a Professora pôde ouvir, e não foi possível captar o som. Ninguém exceto ela acompanhou as palavras truncadas e as letras difíceis de juntar. Ninguém mais que ela comemorou o feito do garoto. “Muito bem, Claudinei. Você está melhor a cada dia. Estou muito orgulhosa!”. Depois pediu para a Sara continuar da linha três. E a menina leu rosto a rosto para o seu irmãozinho atento na história e nas figuras. Aline terminou o texto. A Professora então solicitou à sua ajudante mais dedicada que copiasse as perguntas no quadro. Alice ficou na ponta dos pés enquanto escrevia, como se flutuasse no espaço.
“O que vocês entenderam da história, pessoal?”, perguntou a Professora. “Eu gostei da parte que ele vai pro espaço e quase encosta na lua”, respondeu Aline. “Eu fiquei com dó que só o vovô acreditou nele”, opinou Alice, compungida. “Eu achei legal que o irmão dele salvou ele de dentro do foguete quando ele ficou preso”, observou Sara. “Tia Mi, meu tio disse que já viu um ET lá no sítio. Eu também já vi, ele apareceu atrás do galpão de veneno. Ele tinha um olho bem grande e era bem magrinho. A minha mãe mandou eu parar com coisa, que era só um bezerro. Mas era muito feio pra ser bezerro. Eu fiquei com muito medo nesse dia.”, contou Arielton. “Eu não tenho medo de ET. Se eu ver um pego o revolver do meu pai e dou um tiro nele”, entusiasmou-se Jeová.
“Cut!”, gritou com a voz embargada o cineasta, “Great, great! Ficou muito bom! Congratulations!”. A equipe de filmagem se entreolhou, todos choravam. Envolveram a Professora e as crianças num abraço coletivo e saltitaram desajeitados. O Diretor entrou esfuziante e comunicou que todos estavam dispensados das aulas para que pudessem comparecer ao coquetel oferecido na sua casa. Lá já estavam esperando o Prefeito, o Governador e o pessoal da mídia para a cobertura daquele grande dia.
“Ótimo trabalho, professora, ótimo trabalho”, felicitou o Diretor, “Você quer ir de carro comigo?”. Mileide respondeu que não. Todos já haviam saído para a tal recepção, mas ela disse que ainda tinha alguns assuntos a resolver. “Mas olha, estão todos te esperando, não demore”, disse ele ao se despedir.
Sozinha na sala de aula, a Professora sentou na sua cadeira e abriu a caixinha de papelão. Todas as crianças também tinham ganhado um kit-lanche depois do arremedo de aula e dentro da caixinha tinha um hambúrguer, batatas fritas e uma outra caixinha de suco de frutas. Havia outro pacote e ela o abriu. Era uma cópia do disco de ouro na qual estava escrito per aspera ad astra. Ela havia lido que nos originais essa frase estava gravada em código Morse. Olhou o souvenir por alguns segundos e o deixou de lado na mesa. Olhou então para a parede pintada, para o campo, o burrinho, o menino pescador e para o céu descascado. Suspirou. Abriu seu diário e começou a planejar como faria com todo o conteúdo acumulado que teria de lecionar ainda naquele finalzinho de ano.